domingo, 27 de fevereiro de 2011

Máquina de escrever

Preocupa-te com o mundo lá fora que, de quando em vez, aqui, dentro de casa, o mundo é simples.
Simples!
O que te rala a ti, afinal?

Não achas tarde demais para não gostar?

Não achas cedo demais para perderes?

O tempo não acaba quando morres, muito menos alonga quando pensas poder viver.
Pois, então? O que pensas fazer com o que fizeram de ti?

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

"Eu mudo para continuar o mesmo." (disse Sartre)

Era de novo de manhã cedo, e ela já se encontrava em frente ao espelho do bafiento armário da roupa, a exibir, de cuecas relaxadas e soutien um ou dois tamanhos abaixo do recomendável, os seus contornos imperfeitos e sublimemente femininos, sem que tal se lhe assomasse à preocupação.
Girava sobre as pontas dos pés descalços, a olhar com interesse a sua pele branca e pigmentada, que banhava a sua figura com ensejo.
-Maria! Quando desces?! Já te pus as torradas na mesa!
Num ímpeto descomprometido, Maria pegou no relógio de pulso desgastado e castanho que estava sobre a mesinha de cabeceira, e olhou-o rapidamente. Tinha-se distraído de novo com as horas. E como isso era repetidamente aliciante, como a demarcação sonora do frágil ponteiro dos segundos.
Vestiu rapidamente uma camisola de lã alaranjada e desbotada, os jeans habituais, apertou o cinto, pegou na mochila e no casaco axadrezado, e saiu do quarto de rompante.
-Já vai! Estive à procura das minhas botas!
-As botas? Estão aqui em baixo na entrada, Maria!
-Ah, pois... sim, é verdade!
Fingindo-se esclarecida pela primeira vez naquele dia, voltou a entrar devagar e silenciosamente no quarto.
Olhou à volta para as cortinas da janela, colcha e topo do armário, à procura de algo que bem sabia não serem as botas pretas de cordões.
Atirou-se de joelhos para o chão para abrir uma gaveta do armário, e tirou-a para fora. Voltou a despir-se com o mesmo entusiasmo com que se levantou da cama antes, e de novo de cuecas e soutien, deixou-se ficar a olhar para o fundo escuro da gaveta.
-Maria! Então?!
-Er... Dois minutos!
-Vais chegar outra vez atrasada! Despacha-te! Já te penteaste?
-Hum...
De lá de baixo ouviu ainda mais alguns resmungos que se perderam algures nas escadas, e então meteu uma mão dentro da gaveta.
Se de procurar alguma coisa se tratava, Maria disfarçou precisão e foi certeira agarrar qualquer coisa.
O sol já subia no céu à procura das poucas horas que faltavam para o meio-dia.
Na cozinha, ouviu-se alguém descer as escadas, com o passo ligeiro.
-Ah finalmente! Estava a ver que ias ficar no quarto para sempre! Pareces uma menina!
Pedro não a olhou directamente, como que se desculpando, e pegou rapidamente nas torradas já frias em cima da mesa, deixando-as estalarem desleixadamente entre os dentes.
-Bem, vou-me então calçar.- Acrescentou ao sacudir as migalhas da camisola laranja desbotado.
Sentou-se na soleira branca da porta que dava acesso ao pátio, e calçou as botas pretas de cordões. Levantou-se num pulo de mochila às costas, e correu para a paragem de autocarro a alguns metros da casa onde crescera.
Já a correr desajeitadamente olhou por cima do ombro para trás e gritou sorridente;
-Adeus Maria!
, enquanto acenava com a mão que tinha livre, e o autocarro chegava à paragem.
Ao entrar, no meio da mancha de pessoas, ele desejava já ardentemente regressar a casa.
Ao entrar, ela já sentia na cozinha a solidão da casa vazia, à espera da sua chegada ao fim da tarde.

E o sol..., esse, depois do meio-dia, demarcou o seu trajecto descendente, brilhante no seu sistema universal.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2011

Acontece


Acontece, mais vezes do que o recomendável para ser belo, sentar-me e olhar em frente para a rua sem a focar. Como quem olha de perto de mais aquilo que não existe nessa mesma rota demarcada pela calçada, e que se calhar nunca por lá passou. Com uma lucidez quase tão absoluta como a morbidez das coisas simples. Acontece também, encostar-me, a seguir com o olhar o fumo do cigarro de todos os que à minha volta se movem. Como se a minha ilha deserta ansiasse pelo despertar dos vulcões das montanhas vizinhas além mar. Numa expectativa adormecida e privada.
Tudo é cinzento. E cinzento é nostálgico e quente como uma velha fotografia de 1920 de alguém que fez parte da nossa família, e que se apresente demasiado sério.
Os olhos brilham-me com igual distancia de tempo e de esperança a ver, a penetrar aquele nevoeiro de pernas e sapatos e roupas e malas sobre o chão à minha frente, perpendicular a mim. Frente a frente como que numa concordância ocasional e sem intenção alguma. Eu e aquela rua. Eu sozinha, e a rua calcada por tanta gente.
Sentindo-lhe o cheiro da chuva sobre pedra e outras coisas, valorizei-nos o silêncio. Como a maior e mais valorosa conversa que alguma vez poderia vir a ter. Dada a semelhança, não nos voltaríamos a encontrar daquela mesma forma.
O que traz a intensidade vulnerável da minha exaustão, sentada ali, de fronte com aquele passeio alegre, onde a chuva caia... Por onde as pessoas corriam a fugir umas das outras sob a intrujice da normalidade comum... Se o passado está vazio de memórias? Se a ladeira não se pode lembrar de tanta gente, pode em tom de graça, ser regada pela chuva e iluminada pelo sol.
Usam-na porque é útil. É cheia de si. É ao comprimento da sua verdade. E não chora.
Tomara eu não chorar como ela por não ter memórias. Tomara as memórias voltarem a juntar-nos ali, perpendiculares, frente a frente, naquela conversa válida de coisas impróprias mas invisíveis aos olhos de quem ali fumava.
Mas eu chorava. E isso, condenava-me.
E se há quem chore porque as memórias os assombram... Eu naquele dia chorava porque não as tinha.
E a sua ausência, demarcava a certeza de que nunca mais me sentaria ali, a ver aquela rua sem a focar.
Com a melancolia intolerável da sua verdade.
Fosse ela qual fosse.
Levantei-me, e nada mais nos unia.

sexta-feira, 18 de fevereiro de 2011

Big Fish


Have you ever heard a joke so many times you've forgotten why it's funny? And then you hear it again and suddenly it's new. You remember why you loved it in the first place.
That was my father's final joke, I guess. A man tells his stories so many times that he becomes the stories. They live on after him. And in that way he becomes immortal.

Will Bloom

terça-feira, 15 de fevereiro de 2011

Podia ser bonito. Mas se o é, foi engano.

...Engano o tanas!

Compensara-me agora a literatura, ou outro afazer aleatório que me convença de um qualquer poder incauto de sabedoria original.
Sei lá...
Hoje chove. Muito. E não que isso me encharque o cabelo desalinhado, ou a roupa que, ainda que a mais, me apadrinha. Nem por isso, não... Mas a consciência de que a torrente e a trovoada não se preocupam com as horas ou os dias, coloca-me numa posição pré-defensiva. O que como reflexo, mais não é que não precisar de empurrão para cair na toca dos lobos sedentos. Mas ir lá ter, pelo meu próprio pé.
Num todo anterior a mim, ensinaram-me a andar. Seja para onde for. Fazer o quê? É uma advertência global bastante consentida e fundamentada. Logo, o meu pé é o dos outros. Dos que nem sequer me conhecem e tudo o mais... Afinal somos ou devemos ser todos feitos do mesmo. A treta, é que uma ou outro nervura ou nervo a mais, pode-nos induzir a um erro ascético de nós mesmos perante o resto. E lá vem o individualismo inculpado.
E eu que tenho falado tantas vezes de dinheiro porque tem que ser..., que merda, hiem?
E porque a política arrelia. Ou a religião ofende... Se estás dentro de uma caixa, ou cheiras a cartão, ou morres asfixiado!
E depois são as pessoas que me preocupam. E nem sequer me passa pela cabeça preocupar-me com a sociedade. E até sou apologista do aquecimento global, vejam bem. É. Serei. Porém apoio ecologistas. E tudo o que remeta para o bom investimento moral. Mas é como com todos os empreendimentos desde o início de todas as Eras; Usa e sê usado.
Quem procura manter intacto ou, num repentino ocorrer reaccionário, procura salvar a porcaria, é mentiroso ou ingénuo. E como todos somos um tanto ou quanto de cada uma destas qualidades, podemos sempre ponderar fazer uso também das restantes. Portanto, agradeço que não submetam moralidade a um só género.
Vocês acreditam no equilíbrio? Mesmo a sério? Assim como acreditam nos cromossomas responsáveis pela percepção das cores que globalmente conhecemos? Amarelo, verde, vermelho, azul,...? Sentarem-se quatro pessoas numa mesa quadrada, duas de cada lado?
Eu acredito. Porque enfim, não sou louca ao ponto de me dar ao luxo de não acreditar em nada. Só por isso. Gosto demasiado das coisas simples da vida, para me dar a tais manias de alto custo. E já assim não tenho bolso para pagar nem metade. Daí equilíbrio ser tão real como perfeição.
E de novo dinheiro. Daquele que não se paga. Dinheiro deveria ser pó. Pó, lixo e cotão. Aí sim, estaria tudo salvaguardado. Mas não dá jeito. Porque não foi assim que se decidiu e agora era uma chatice salvar o mundo.
Percebo.
Temo reagir. Se te olhar de frente, vejo-te de perto demais. Se te olhar de esguelha, fica tudo na mesma, e perco ângulos. Se não te olhar, finjo. Ser-se racionalista ao mesmo tempo que se sente toda e cada víscera, diria que é das condições mais difíceis e cruéis de se deslindar. Isto partindo do pressuposto de que condição existe. E de que não é mais uma desculpa. Como aquela que damos quando não nos queremos levantar da cama.
Digo eu, assim como quem nem quer a coisa, que há mais marinheiros que marés, e não o contrário. E que a maioria das coisas está demasiado gasta. Demasiado.
E como eu tive sempre uma tara especial por coisas velhas!

terça-feira, 8 de fevereiro de 2011

O meu seio contra a arma.


Corria mais rápido que o vento, praia fora. Estava frio, e ela suava. E o frio fazia-a suar mais. Tinha a boca seca. E a garganta era-lhe asfixiada pela saliva. E ela tremia, e não sentia as pernas que já não tocavam a areia. O rumo afunilou-se à sua frente e ela tentou correr ainda mais, para acabar tão somente com aquele pesadelo que lhe martelava como tambores gigantes nos tímpanos, e lhe feria a réstia de sangue que lhe percorria a custo no crânio. E já não conseguia parar. E já não tinha pernas.
O que raio haveria no fim de tudo aquilo?! Daquele gelo cortante. Imagem branca da imensidão tão vazia como o seu peito, que mais não era que grades largas que cobriam um velho barraco cheio de lixo. Cheirava mal, estava podre, mas o seu hálito sabia a maresia da madrugada.

Já voava. Com asas cor de pedra, mais largas que a margem. E ela, entre elas, perdia-se como um pequeno fuso tosco. Uma mancha enegrecida sem qualquer significado.
Só as asas a faziam voar.
Mas que já era ela? E que raio era tudo aquilo? E que raio era o que deixou para trás? E que raio eram eles? E que era ela com eles?!

Não era nada. Não podia ser nada.

Como que quebrando o sufoco num repente brutal, tropeçou e caiu.
E então tudo permaneceu, a girar hipnóticamente à sua volta sem parar. Uma e outra vez. Misturando imagens, fazendo-se uma. E de uma, uma mancha. E da mancha, ela. E dela, apenas uma cor. Uma sombra compacta sem textura nem pigmento. Envolta em coisa nenhuma.
Tinha afinal um pé partido, e as pernas doridas. Agora sim, via o chão. Sentia-o no seu corpo pálido e doente. Agora sim, estava caída de cabeça afundada na areia, como que lamentando a sua glória imunda, de encontro às portas do inferno.
Abriu os olhos. Estava estendida no areal. Com a pele a estalar desidratada pelo sol do meio-dia e das gentes de quem o mar apagou as pegadas.
Quis segredar por socorro.

Mas quando entreabriu os lábios, adormeceu.

sábado, 5 de fevereiro de 2011

X


Despe a tua cara, careta que contorna tal figura no espaço.
Veste a tua cara, careta que pinta tal espaço, dado que a tua figura é cinzenta.
Senta-te ao lado dessa mulher, e mostra-lhe as tuas mãos a desfolhar o livro que está sobre a mesa.

O que lhe contará não importa, mas desfolha com calma, e alguma fé.

Não em Cristo.
Não na humanidade. Não em ti. Nem na vida.
Mas nas tuas mãos, a desfolhar esse livro, ao lado dessa mulher.