sexta-feira, 23 de novembro de 2012

Dosa

Não sofro de esperança. Do mal o menos.
Pratico a insolvência da compreensão lenta
Lenta e lentamente, de lente somítica latente

Não vivo de bem. Pago o mal
Não vivo de mal. E fio o bem
Pouco se troca, quando se nota

E notar é, a bem dizer
Esquecer que de algo se trata
E não ver, para lá da minha frota

A mal dizer, não puder estar
Onde não me convém
E o que me convém a mim
Não puder assim ser
Porque por tais putas me fadei

E a fidelidade eu lhes dei
Pois que assim!
Esbanjando o engano grosseiro
De que para mim morria descrente, pelo menos
E pelo mal, prisioneiro
Delas
em mim

Delas
Ai delas...

Que nunca sofri de esperança
E que só a mim isso paga respeito
E até herança.

Do menos o mal
Salvé comigo feito.

quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Andrógeno

No alto da nuca detinha uma aclarada película de pele rugosa e cinzenta. Todo o seu rosto era afocinhado para a fronte, como um animal de espécie intermédia e mal amanhada, de instinto selvático. O nariz era o único e determinado propósito daquela disformidade craniana; Lembrava uma pirâmide e era rechonchudo, sempre húmido, apuradíssimo de faro, capaz de discriminar qualquer minúsculo ser insolente da sua própria existência a desertos de distância. As orelhas de ouvidos afilados, perdiam-se sem registo de presença por entre o pêlo grosso como palha, imundo de restos de negro trôpego.
Era quase por ser assim, que tudo lhe era devolvido pelo invariável respeito ao medo. E ele içava o seu longo pescoço, composto por vários anéis cor de cobre, e erguia-se sobre as pernas tortas e finas como ramos rijos de castanheiro, espetados nuns gigantescos pés, que ainda que desconformes e peludos, eram o único sinal  no seu corpo que o coligava aos humanos.
Na esfera infinita da sua barriga, ele guardava a fome. Fome essa afamada pela fartura.
Para ele, fartura era um pecado. E a sua véstia de predador facilmente o delatava no mundo. A sua fúria por tal injúria era celeste pela falta em negação, de carborante.
Não se lhe fala do peito.
Era o bruto e jamais o cyborg que os putos nas ruas lhe chamavam, pelos seus imensos braços em geringonças metálicas. As extremidade destes, eram afiadas, e cortavam maçãs aos círculos. Não eram mãos. Não tinha dedos.
Desaparecia para não se sabe onde, a fim de dormir. E fugia indefinidamente quando ao fundo, por de trás da igreja, tocava a sirene estridente e gélida da máquina dos sonhos.
Era cego.

domingo, 29 de julho de 2012

Desta; P de Purpurinas

Olhei para a sua perna, e vi brilhos. Daqueles que se compram colados nos enfeites das lojas de decoração e pechisbeques criativos. A sua perna esquerda dobrada, sobre o lençol nos tons da meia luz do quarto, à alusão dos meus olhos entediados por ali vê-la sempre fechada em si num silêncio nebuloso, tinha brilhos sobre a pele. Cristais de plástico metalizado. 
Contei-lhe.
Todos os dias, a via nua de frente ao espelho, a medir as proporções apenas dos seus pés que, dizia ela, se deformavam à medida que o tempo e a vida lhe faziam o íntimo mais feio e imbecil.
E eu, nunca lhe diria que os seus pés eram perfeitos e os mais belos que alguma vez vira. Jamais a obrigaria à minha intenção tão tensa e obtusa de a amar. Ainda que fosse verdade.
Contava-lhe as ilusões do corpo, como histórias para adormecer. E antes de adormecer, sorriamos sem nos lembrarmos de nada. Soltos dos braços um do outro, e de pés cruzados no desajeito da mútua presença tão sublime, ao fundo da cama.
Nunca fomos dos que precisavam de acreditar.



sábado, 21 de julho de 2012

Controração da virtude

E no regresso, da algibeira sacou um pão seco, num gesto redondo e teatral. Devia a esse naco de água e farinha, que morreu ao fim do dia, uma pleonástica intenção de afecto.
Mascou-o com desenvoltura, e um sorriso de boca aberta, enquanto olhava o fundo da passagem de pedra encardida em muros altos.
Ele, ele era filho de Deus. Desse, que o desconhecia à distância da humanidade.
Sabe-se lá.
Pelo centro e ao fundo da passagem escura, o sol já os deixava, desta vez, com a pressa suficiente de uma partida lídima depois de tanto tempo incerto. Talvez fosse ter com O das alturas. O de lá. Deus.
Pois que era provável que Este nem o esperasse, visto não o precisar, a cima.
O Ele, seria Ele de quem? Deus do quê? Se é Deus, é de. E ser de, poderia significar pertencer.
Deus pertence. E ao que pertence, comanda.
É da natureza do universo fazer-se precisar no espaço dessa mesma exacta vontade do seu semelhante.
Mas porque calhou ao universo, ser o maior e mais amplo. O das alturas.
O Deus que alguém escreveu que capitaneou a pregação do querer-bem. Porque do topo da cadeia, tudo o resto se come. Seja o que for.
Porém que venha! Pois a fome é a morte mais conhecida de tudo o que finda à plenitude.
Não há nada que se negue à vontade de se vingar na procura do sustento. Tudo é, porque mais o mantém.
E de amor... Amor. Só da sua algibeira velha, ao enlutar do dia, se podia sentir, duro e morto, o pão que lhe prolongou o caminho negro, a baixo das paredes sujas.
Para onde o maior ia, a pouco lhe sabia para matar a fome. O Pai.
- Oh Pai..., oh que te mantenho e que te sou ingrato, porque me guias na cegueira desse trono!
E neste fim, grato pelo naco, então, sagrado, eu desenho uma larga vénia às migalhas caídas na ladeira.
E Tu estremeces do paraíso aquando me ergo de novo a caminho, sem saberes o que Te perturba.-

E ambos não tardaram a adormecer, sobre-tudo.
Ou Ámen.


sexta-feira, 6 de julho de 2012

quinta-feira, 28 de junho de 2012

Eles, comigo.

Eram tantos pelos quais lutavam em desaforo. Tantos quantos os que se encostavam, ao fim da tarde, à grande falésia, a fumar coisas de alto valor de descompensação por parte do mundo. Coisas caras, de acesso odeante, que os traziam à companhia uns dos outros, na solidão enfatuada pela desafectação da vida.
Lutavam em desaforo por tantos. Contavam-se pelos dedos, a cada dia que passava, o que procuravam de cada um, filosofando sobre o amor.
Era o fumo ou o peso. A intoxicação da facilidade. A leveza frágil, que se vendia a tantas oportunidades vazias.
Eles eram demais. Literalmente demais.
Demais no que faziam. No que não queriam. No que ouviam. Para onde iam.
Eram demais.
Eram demasiados para serem bons.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

Outra vez

De frente para o sol, todos seremos mais claros.
Uma contra-luz da alma, e um alvejar da tez e dos sinais.
A noite almeja a nossa carne, delineando-a de saborosos enganos, e traz-nos de novo pela manhã.
E aqui estamos nós.
Quem é quem, para dizer que não dormi esta noite.
Que não somos a cara feia que vêem. As rugas, o amarelo e as olheiras.
E quem as trouxe.
Todos falam da solidão com piáculo, e que sabem eles dela na companhia...
Todos renascem da sentença, quando as horas contam o final.
E todos nós. E todos qualquer coisa.
E em todos os tempos, há poemas da noite e de alvorada.
A trivialidade não é melhor por ser poetizada. Mas por ser.

segunda-feira, 4 de junho de 2012

Sequer

Julgava-te numa emboscada entre a lucidez e a deliberação.
Julgava-te a dar-me a opção de auxílio. Deitado na teia do amuo, e de cabeça encostada ao quadro do deserto que ilustras, desde que te fizeste gente que reconhece a vontade como uma falta constante.
Tanto que acabei por cometer o único erro de entre os tantos inúteis que poderia cometer;
Julgar-te, enquanto me pensavas à medida dos teus horizontes do ócio.
Reduzi o meu critério à gentileza larga do teu imaginário ocasional.
E pós leitura, fica o prelúdio nas costas das paredes das casas dos outros.
Outros quaisquer que me traem, sem que eu os saiba.
O julgamento é e será sempre uma coisa séria. O vínculo, que esquecido, deixa sempre um rasto de sangue onde ninguém pode determinar.
Sem querer, julgo então lúcida a tua indolência.
E estou eu em apuros, baixa.
A pena perpétua é exclusivamente minha.
À minha própria extinção..., num espaço nulo, forjado dentro de mim.
Lá dentro, lamento-te. Lá dentro é lamento.
Pareces-me ardente, e lá não há fogo.
Pareces-me alto, e lá não há vertigens.
Pareces-me, e nem existes.
Imposição negra, no centro assimétrico.
Ou não fosse o meu egoísmo tão pouco audacioso, sem termo desonrado de comparação.


Sou aquela que chora pelo juiz, e não pelo acusado.
Porque choro não é pranto.

Choro não é pranto.



terça-feira, 1 de maio de 2012

Respeito

Criatura. Mulher. Parva. Que te fui ao cu com manteiga. 
Grita, agora. Chora, mulher!
Há lá melhor sabor que este de chegares a mim, enquanto eu te vergo com compaixão própria?
Chegas-me à pena. À minha. Que pode ser tua também, se quiseres.
E que mais que isto?
Não tens culpa. Eu também não.
Culpa é o nosso volume. Um só. Nos lençóis encardidos desta cama que nos adoptou.
Prova-o. Mete-o na boca.
Achas por bem culparmos os outros que nos esvaziaram a alma?
Eles podiam ser mais perfeitos do que nós
E qual travo amargo este da ânsia pelo melhor exemplar...
Mas temos mais em comum nós os dois,
Eu contigo, tu comigo
Que com tudo aquilo que quisemos noutra altura, amar.
Acredita de novo. Pelo menos tu, que prometo admirar apaixonadamente...
Larga e volta. Que tudo começa outra vez..
De novo, nos afrontamos
Nos enchemos o estômago de verdade tóxica
E que culpa temos nós...?
Foi isso que pedimos este tempo todo de pesar
Pena, que não um ao outro.
Pena...
Incapazes somos todos. 
Mas a virtude legítima da vingança, é dos piores.
Dos melhores que achamos antes, e que não nos largaram a sina.
Que exemplar é esse o teu, então, mulher?
Não digas.
Não quero saber.
Egoísmo o meu, não te querer de frente para mim.
Tenho vergonha, sabes?
Vergonha.
Não por ansiar uma vida sã...
E sim, por não saber o porquê de todos a procurarem.
Porque se fala de medo, quando há só cobardia?
Medo torna quase heróica a frustração dos não abençoados pelas suas próprias taras.
Mulher...
Que te fui por trás, lúbrica...
Sorri, por favor.
Prometo, que se o fizeres, eu faço-te cócegas.
E ficaremos aqui, quiçá.
Percebe que, no fundo, eles é que nunca souberam que é o lixo que honra a humanidade.
Oh, mulher...
Somos finalmente nós.
E é tudo.

sábado, 31 de março de 2012

Oxalá

Oxalá te visse tão bonito, quanto és.
A vontade de ir para além de mim a transbordar da vasilha.
Quando te encontro refundido, para que te veja melhor
Ou por mais tempo
Tempo que perco, quando lamento a angústia de não dar
O que em mim é vontade de dor
Tenho em quase tudo, a melancolia
Porque nela se guarda o vazio que trago do que não me foi admitido
E que, contudo, persiste
Como o dia e a noite, para o mundo
O lamento de te deixar permanecer longe de mim
Como a maior alegria do meu ego traiçoieiro
Não sei se me mata, se me afinca à ideia de morte
E a vida não passa comigo.
Oxalá
me soubesses tão bonita, quanto sou
Permanecesses quando a minha fealdade procura o pior
Quando me encontras singela do meu desejo de ti
Medo do teu fundo, que arrogante tento
Que com medo, sorrio
Mais tempo que te fujo, e permaneço
A dar tudo o que sequer posso
A não ter
Por não me veres a mais que na margem do rio
Aquando a sede
Aquando a fome
Aquando a fome da ausência
Não da assimilada
Mas da que nem a morte nos separa

Oxalá não soubesse.

quarta-feira, 28 de março de 2012

Buena-dicha


Discernimento. É o que te faz descer lenta e compassadamente nessa escadaria de ferro, que conta os centímetros, como um banqueiro conta a fortuna.
Estamos os dois na balança da má sorte, quando te fizeste assim, alta, de vestido escorrido pérola, de decote medido ao mais ignóbil detalhe de prudência, e aberto até ao sinal libidinoso da minha mácula.
Perfeitos como nós assim. Tu lá do alto que desces. Eu aqui, numa espera conjecturada, por alguém que não eras tu assim.
Por nós passaram as ordens cinematográficas das grandiosas paisagens. Das pedras brancas, e dos sonhos latentes em romantismo pérfido e infalível. Por nós a lente da indústria da estética. Calculada na ostentação, que espera sempre a loucura e a vénia das multidões ritmadas, aos teus passos selectos na escadaria de metal, mais inquebrável que tu e eu, ali.
Na grande tela, somos sombras. E a sombra brilha, quando a ela é dirigido o aperto da imposição.
Na grande tela, ainda, ficou o ferro, face ao teu vestido ameno e serpenteante sobre o teu corpo, precocemente delineado, em ângulos arredondados do teu esqueleto mais ou menos simétrico.
Continuei à espera que as escadas me engolissem, me desfizessem a pouca elegância da minha espera flácida.
Eu sorria, nas tuas costas. Nas minhas, que afinal, eram as únicas que te sabiam tomar o gosto de cá de baixo.
Ouvir-te o aproximar dos tacões no cinzento bruto e oco, fez-me digno da tua vontade. Passo a passo. Baque a baque.
Roçamos ali os dois a meia medida dos gracejos, por entre gestos que nos venderam. Facilidades da beleza.
E quando te senti no chão que eu pisava, contei cada moeda do meu nobre mas fundo bolso. Eram tantas, minha bela, eram tantas...
E eu ali, no teu chão, de costas para ti, a sorrir do nosso acordo.
Eramos tamanhos, bela, eramos semelhantes. À má sombra da vida que nos trouxe até ali.
Aqui, com o carácter a ferver-nos no sangue, e o discernimento a decair-te aos pés por de baixo do longo vestido. O acaso viu-se pobre.
E eu imundo, tanto para o teu peito, como para a minha cintura. De mãos nos bolsos.
A ser a mais do que tu aos teus pés, e tão mole para as minhas próprias costas.
Discernimento delas. Que te recusaram o teu sorriso, sem o meu.
Dado o golpe da boa sorte, a grande tela caiu.
E de nessa, passaste a descer dessa escadaria todos os dias da minha alma.
Quando a há.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Ponto.


Acredito nos fedores e nos excrementos. Nos resíduos orgânicos. Tanto nos espirros como nos arrotos. Piamente.
Na porcaria, enfim. Porque a sua presença, prevê obrigatoriamente algo ou alguém. E em continuação desse, é parte integrante.
Não se trata, então, de obsessão pelo escárnio. Mas de escárnio pela obsessão.
O mediano e o melhor, são o que menos usamos com virtude. Uma busca enganosa da beleza, que oculta e desdenha a razão dos seus contornos.

Lixo, porcaria, merda..., se arreliam, são só palavras.

sábado, 3 de março de 2012

Clara

Quando de um punhado de convicções surge a deusa suprema
Esta delineia o divino aperto.
Falo-centros, costas quadradas
Estão sufocados pela sua própria indignidade
Dói
a fé que todos desenham com um círculo
É no centro onde ela se serpenteia
Dói
Esbelta, iluminada, lasciva
Olha-os profunda e intermitentemente,
como quem acaricia com as pontas dos dedos delicados e brancos, a sua pele
Que agora suada deseja
Cobiça mais do que tudo
Viril, mais do que a cima
Com a força bruta da carne definhada à vontade
Tresanda o maior
Mais do que a vida ou a morte
Sem que essas a limitem à efemeridade da qual se serve infinitamente
É cego o círculo terreno e perfeito
Cega-nos a luz do imo
Das ancas, dos cabelos, dos seios
Das linhas do rosto do rigor
Pretensão
desacreditada pela loucura da realidade
Baixos, de testa no chão imploram, agora
Por outra mão de escuridade que lhes valha
Pois que já não podem mais crer
Não amam
O âmago é feminino
E também ele findou indecente,
Dando lugar agora ao brilho do sangue
Nada mais humano
Nada mais poesia.

sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

Última


Nada para lá do veneno da penetração. A fenecer a sexualidade à clareza. Como se esta se servisse de bandeja. De seu cozinheiro esteta, e, também, porém, o sabor que vende não sendo o parisiense..., não, jamais. Um restaurante de largueza indefinida, de gente envenenada pela utopia do desejo. Do traçado.
Saibam...
Comam, seus alarves! Comam!
É veneno, se do outro lado do mundo, vos prometeram um prato de aspecto afim!
Se esse era bom..., porque então não guardaram de seus excrementos? Tardios ou certos, fedorentos ou de aroma suportável passageiro.
Vocês que guardam postais, leques, bonecas nazarenas e coisas de paniquetes...
Ele há fotografias, ele há memórias, ele há geografia e calendários!
É veneno venderem-se, cabrões, filhos de gente com culpas de outros tempos!
Usam-se de vocês, como quem usa as meias do dia anterior, porque estas não se vêem debaixo dos sapatos novos.
Como comer, sem morrer pela vergonha da vaidade? Como morrer envergonhado, com a boca suja e o estômago cheio?
De lado...com um sorriso? Deitado a espernear? Em silêncio? Recto e discreto?
Ridícula a morte. Ridícula porque vocês a sonham tal e qual o prato do qual nunca ganharam o gosto, pelo qual a réplica vos mataria, assim mesmo!
E a merda, afinal são vocês. Com promessas de especiarias do oriente, e colheres de prata.
É Deus quem mais abandonou a sina humana. É Deus quem mais abençoou quem para dentro de si vivia.
E, afinal, o culpado é só o que sente culpa. Eu. O triste. O triste que não provou com vertigens e náuseas. Com vómitos e úlceras. Com mil razões para odiar a gastronomia. Para odiar foder. Como quem enfrenta o seu próprio medo. Ódio pela deslealdade que é o sustento do organismo.
É claro (e de claro, isto terá apenas a embriaguez), que depois do segundo prato, que depois de mim, que depois da foda, que depois do lixo das vossas recordações, para todos sobrará somente a morte.
Escolher a morte, ouvi-vos eu dizer...!
Não creiam escolher a vossa, quando foi pelo estômago que morreram.
Eu...sou só descontente. Igual.
Vocês que sonharam antes de mim..., deveriam me trazer histórias.
Histórias.
Não Carochinhas e recordações de prateleira.

Merda, o nosso ultimo suspiro.

A ceia.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

A Lua de Maria Sem - Fragmento I (de João Monge)

DLIW


Se te trouxer como um quadro de Magritte de baixo do braço, trago-te como uma idealização minha. E na verdade, só te vendo através de mim, te poderei conhecer. Se te conhecer e te entender, perco a ilegitimidade suprema de te amar cegamente.
Assim, talvez com isso não te possa seguir pelo trilho inabalável do compromisso e do companheirismo inimputável. Mas jamais duvides que, uma vez conquistada, a minha fidelidade é tão maior quanto a liberdade da minha alma. Vive e morrerá comigo, numa suprema e mais humana certeza de, então, te pertencer. Contempla-me com a honestidade do teu corpo. Deixa-me poder tentar, e tenta-me a puder deixar. Agora que nos vimos.
E eu já gosto de ti.
Pois que isso só a mim me pertence.

Quinta estação

Com as mesmas perícia e doçura com que mergulhava no seu vestido fino e translúcido, salpicado de morangos cor de mel, ela descia as escadas para a rua, de manhã. O senhor Felício, na padaria de frente à porta numero 6, já a esperava todos os dias à mesma hora. A sua não chegada, que já antes acontecera, era sempre presságio de algo de nada bem-vindo no bairro. Qualquer coisa como aquilo que todos os velhos do jardim, donas de casa, jardineiros, merceeiros e até os vagabundos da praça, comentariam com a devida vizinhança por meio de susurros, não vá o diabo tecê-las.
Das primeiras e ultimas vezes que Astréia se recusou a aparecer por força de inconvenientes maiores, desgraças inconcebíveis se abateram nas mentes de todos os sobreviventes pacatos do pequeno bairro, onde vivia.
Ora Astréia perdera sua mãe, por entre lamentos sentidos, e uma onda de negro luto de largo espectro sobre todos..., ora a viagem que fez com o seu pai para as bandas de lá norte, onde este ficou a fazer a vida, diziam, e de onde não mais voltou..., ora um dia incerto, do qual nunca ninguém conseguiu espremer uma lúcida e coerente teoria, que justificasse o facto de Astréia não ter aparecido pela manhã, nessa manhã, na padaria do senhor Felício, para comprar pão fresco e manteiga, como sempre fazia fielmente.
Astréia era assim. Dobrada gentilmente pela simpatia que todos nutriam por ela. Risonha e não se vestia nunca de preto. Todos a conheciam, como uma vaga luminosa que às ruas de terra batida dava uma rotineira alegria de Primavera com cheiro a fruta de pomar.
Sabia-se ser o seu vestido preferido, aquele mesmo, daquela manhã, nova manhã, translúcido, de saia rodada e manga balão, todo coberto de morangos cor de mel sobre um brilhante e claro tom de bege.

- Bom dia menina Astréia!
- Bom dia, dona Úrsula! - respondia, com o seu modesto e sincero sorriso.

E continuava o seu caminho, a olhar o interior das janelas abertas, sem que através delas visse o que para lá delas era guardado. Havia qualquer coisa no esvoaçar das cortinas, no quebrar das portadas, no gemer da madeira dos velhos móveis das casas, que a faziam seguir rumo à vida, assim mesmo, despretensiosamente e sem qualquer motivo aparente.
Havia-o, era certo. Mas chegado o anoitecer, num recolher humilde e ambiente bucólico, Astréia regressava a sua casa com a mesma leveza com que a manhã a levou.
Nunca ninguém ali soube de onde vinha, ou para onde partia tão singela na sua perfeição carregada de proximidades desconhecidas. Contudo, e naquele mesmo lugar, com Astréia isso nunca foi necessário. Nunca antes se tinha ocorrido a tais gentes a vontade da curiosidade, ou o preconceito desocupado que lhes desalentasse o carinho que nutriam pela garota.
Que importa. Era ela. Talvez a quinta estação de um tempo nunca antes pensado, e que garantia a eternidade dos dias iguais, em tal terrinha.
Astréia, por sua vez, e chegada a outra passada manhã, não apareceu à hora de sempre à padaria de frente à porta numero 6, para comprar pão e manteiga.
Que se teria passado? Que terrível infortúnio estaria para vir, que causava tanto e tão comichoso mau estar por todo o bairro?
Os susurros perderam o eco, pois faziam-se existir em uníssono, emparelhadamente.
E dada a falta, não mais alguém soube o que quer que fosse de Astréia, onde todos os rostos se cruzavam com o dela, diariamente, aos mesmos pontos do Sol.
Que seriam dos morangos cor de mel? E do pão fresco e da manteiga?
Já que de Astréia, seria apenas o que Deus guardara e dará... Uma vez que o que deixara, fora a ambiguidade que é a comodidade do amor.
Afinal o passado, foi hoje mesmo.
E a sombra do anoitecer cobriu de novo os telhados daquelas casas, como se Astréia tivesse sido, afinal, mero segredo do Sol que se ia em silêncio.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

Passadiça

Quando a imaginação ultrapassa todo e qualquer relógio gasto, que se prega no alto da torre velha de uma igreja, a base de verdade está ganha, porém a ideia de felicidade, perdida.
O cepticismo transforma-se numa substancial defesa com um elegante vestido preto de noite. Num desfiladeiro encalcetado de crenças calcadas pelo orgulho da realidade.
Acredito no teu caderno de letras, tanto como no ridiculo das suas páginas. Tenho os bolsos cheios. O casaco roto. Tenho frio.

Cai-se-me o carmo e trindade sem mais lixo ou sequer Cristo. Apesar do fedor e das suas chagas me cravarem o peito de derrames vãos. Mas que combinam perfeitamente com a confortável camisola vermelho sangue, de gola alta, que hoje visto.
No amanhecer de todos os dias, dispo-me inteiramente de pudores. Conjecturável sensualidade. Porque o que me veste é a vergonha da existência, não a roupa que me guarda.

Posso jurar a pés juntos, que consigo fazer-me feliz, assim. Só assim. Tanto assim.